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terça-feira, 27 de setembro de 2011

perfil de mãe, no oitavo ano de sua partida

Nunca reclamona, nunca chorosa, nunca desmilinguida. Pau para toda a obra. Assim era a Dona Lourdes, minha mãe. Corajosa, também. Basta lembrar que aos 17 anos, recém formada na Escola Normal da Caetano de Campos resolveu fazer o que ninguém da família esperava. Agarrou o diploma e se jogou no interior para seguir carreira. Deu aulas em escolas rurais, daquelas que a chave da sala fica com a professora, ela pega a trilha no mato, abre a porta, varre o chão e espera os alunos. Rodou todo o interior, morando em pensões modestas, até chegar na Capital. Alfabetizou muito bem, diga-se de passagem, uma pá de alunos. Eu, inclusive, no Grupo Escolar do Cambuci. Mesmo depois de aposentada continuou ensinando em escolas particulares. E quando não deu mais, dá-lhe trabalho voluntário : cuidou de velhos, de bebezinhos, leu para os cegos.
Casar não era exatamente o seu plano. Tanto que só o fez aos 37 anos, quando conheceu o Theo, meu pai, um ser desquitado. Horror dos horrores para a época. Unir-se a um homem separado. A Lourdes nem deu bola. Ainda foi casar, de vestido mais ou menos de noiva, em cerimônia religiosa, numa igrejinha do Lavapés que aceitava juntar "gente assim". Alguém, que não se sabe quem, dedou para a Curia Metropolitana e o bispo chamou os dois, a  Lourdes e o Theo, para um puxão de orelha. Diante do fato consumado, o tal bispo vaticinou que eles tinham de viver como irmãos (quá, quá, quá). Meu pai deu-lhe a resposta merecida, e os dois foram excomungados.Pode?!
Depois de enfrentar a própria família e o bispo, foi a vez de a Lourdes enfrentar a sogra, a Josefina, que dizia alto e bom som, que o Theo tinha ocupado o lugar do falecido marido, o Juquinha. Quando todo mundo contava com o Theo solteiro para cuidar da mãe, aparece a Lourdes. E depois, eu! Filha única, nunca criada como tal. Sempre buscando a minha independência, porque minha mãe dizia que tinha medo de não viver o tempo ncessário para me ver criada. Deu no que deu! Não só me viu criada, como me viu envelhecer...
A Lourdes era brava também. Experimentasse mexer com um dos dela, e a mulher virava bicho. Foi assim quando o pai foi reprovado, aos 50 e tantos anos, no vestibular da São Francisco, por dois décimos. Dois décimos! A Lourdes não se conformou. Catou a bolsinha e foi para o centro, pisando duro, falar com o tal professor da tal matéria. Catedrático, semi-deus: O senhor não tem vergonha de reprovar por dois décimos um homem de 50 anos que quer realizar o sonho de ser advogado? A sumidade arregalou os olhos diante de tamanha petulância, mas, claro, não voltou atrás. O pai deu-lhe o troco. Entrou em Direito na Unicamp e mandou o tal catedrático às favas.
Durona a mãe era mesmo. Até no jeito de falar. Mas tinha, ao mesmo tempo, uma mansidão invejável, um jeito zen de ser só dela, para enfrentar os revezes da vida. Não se descabelou quando, por exemplo, recebeu a notícia do diagnóstico do meu câncer. Chorou abraçada comigo várias vezes na volta das sessões de quimio, mas não perdeu a pose. Ou a fé, que ela tinha de sobra, sem ser piegas. Manteve-se forte também em alguns episódios assustadores patrocinados pelos netos queridos. E também nas horas em que teve de enfrentar seus próprios desafios: duas cirurgias de fêmur, várias internações causadas pelos problemas cardíacos. Esforçava-se para colaborar com quem cuidava dela, nunca reclamou de nada nos hospitais pelos quais passou. Sempre mansa. E mansa ela partiu, há oito anos, cercada por mim e pelo pai no último momento.
Mulher porreta essa Lourdes. Sorte inigualável a minha, tê-la tido como mãe.